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  • Foto do escritorTalita Gantus

A cidade estanca, a cidade estrofe

Atualizado: 22 de jul. de 2021

Lá embaixo nas ruas a cidade desperta mais uma vez!

Quem recolherá os entulhos dos nossos dias?

Quem observará as histórias impressas e registradas nos muros que eles querem acinzentar?

Quem protegerá aqueles e aquelas que dormem em casas erguidas

que se esmorecem com as intempéries da vida?

Quem fará poesia das empenas dos prédios que gritam os gritos

marginalizados

agora grafitados;

dos quartinhos embutidos e abafados

onde mulheres e homens

e mulheres e mulheres

e homens e homens

trocam promessas

e líquidos

e escárnios

antes do amanhecer?


Ela mesma:

a cidade que se ergue sobre as ruas asfaltadas

ou cobertas de paralelepípedos

que servem de palco para os seus próprios filhos:

os que se banham nas águas das fontes nas praças públicas;

os que mergulham nos rios infectos

que cortam as marginais das grandes capitais;

o vendedor ambulante do centro da cidade

com suas bugigangas que não salvam nem a ele

nem a ninguém;

o catador de papelão que disputa seu espaço junto aos carros que se acham donos das ruas;

eles e todos que catam, cantam, olham e vendem

tudo

e nada

ao mesmo tempo.


Os que subiram das senzalas urbanas

nos apertados porões das imensas mansões

direto para as grandes avenidas da metrópole;

os que pulam as sete ondas no dia trinta e um de dezembro de todos os nossos dias,

e que esperam ou não esperam que o próximo ano seja melhor

ou não seja

ou seja como todos os nossos dias,

vida e morte,

e que agradecem pela praia ainda pública e democrática,

embora não saibam bem o quê isso significa.


Os que descem e sobem e sambam

ladeiras nos carnavais

de pelô,

de Belô

e de Olinda,

de retratos urbanos que se desenham

como telas que emolduram

vida e morte,

vida e festa,

vida e graça.


As cidades catatônicas

que observam seus filhos

que falam em política e jogam lixo no chão;

que falam em veganismo

e se alimentam de produtos empacotados das prateleiras de grandes mercados;

que falam em democracia e trancam seus cachorros

o dia inteiro

num apartamento de trinta metros quadrados e saem sem hora pra voltar;

que chamam as empregadas de família

e não se importam com o tempo que levam pra chegar ao trabalho,

e se elas não folgam no sábado porque eles não podem limpar o que sujam

pois precisam vender seu tempo para os escritórios dos grandes prédios espelhados no centro da cidade para pagar as empregadas.


A cidade ouve,

vê,

corre,

escorre

entre os dedos do alvorecer ao entardecer.

Dentro e fora da imagem retratada

no recorte que mostra

muito e pouco:

a cidade estanca, a cidade estrofe.


Foto: Bruno Fernandes

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