Talita Gantus
Ainda somos os mesmos
Atualizado: 24 de fev. de 2021
esses dias ouvi num podcast (que inclusive chama calcinha larga, e só agora me liguei) a conversa com uma uma roteirista importante que dizia que quando ela era adolescente ficava reparando nas mulheres da idade da mãe dela que usavam aquelas calcinhas que dividem a popa da bunda no meio, e pensando “como elas não percebem que tá horrível essa bunda partida e não trocam essa calcinha?!”. anos depois, ela - que já beirava os 40, mãe de uma filha pequena e, no momento, dirigindo um filme -, olhando no elevador, cabelo branco, cara de exausta, reparou que também tinha uma bunda partida pela calcinha e pensou “acho que as nossas mães só tavam cansadas”. escutei isso de manhã, enquanto preparava meu café e me acabei de rir. aquele seria um dia arrastado (a semana, aliás), a última sessão de análise reverberando na cabeça por dias, hormônios a flor da pele, com muito trabalho pra fazer, várias ideias, zero energia e muito cansaço. eu tinha acabado de ficar menstruada, minha perna pesava 3kg, me sentia inchada e era puro gases. parei na frente do espelho antes de deitar e, ao reparar na [da vez] minha bunda partida pela calcinha, eu ri e lembrei desse podcast. deixei de lado a culpa por não ter cumprido um terço da minha lista megalomaníaca diária, a culpa por não ter feito um skincare pra, pelo menos, fingir autocuidado em um dia de merda, e fui dormir.
nos dias seguintes, folheando o álbum de fotografia da família, que tenho tido vontade de (re)visitar por vezes nos últimos tempos, qual não foi minha crise de riso [identificatório] quando achei essa foto da minha mãe:

minha mãe de costas.
a foto é de um dia em que ela recebeu uma homenagem na escola em que ela era diretora em Realeza - cidade em que a gente morou até eu completar 1 ano, quando mudamos pra Manhuaçu. mas, a história não é sobre isso.
essa é a história da elaboração de um luto e ressignificação da memória (ou de memórias) da minha mãe; ou, um processo de (re)construção de mim mesma, de auto identificação, auto recuperação, auto resgate. parte de um percurso. não sei muito bem que nome dar. parece que o sentido mora na entrelinha do dito e do não dito. como se escorresse entre o falado e o ouvido. a palavra não se faz (ou não é feita?) suficiente. mas, ao mesmo tempo, como um paradoxo, já sendo difícil falando, se eu não nomeio, sinto que não existe.
talvez seja isso, talvez o sentido esteja no não-sentido. como o lugar no não-lugar. talvez? talvez. percebi o não-bom, no bom, “organizando o melhor”, e depois disso minha vida mudou. embora ela mude o tempo todo [nota mental sobre mudança].
pois bem, no processo de uma mudança de casa a gente aproveita pra jogar fora os cacareco que acabou acumulando, abre aquela gaveta, aquela caixa preta empoeirada, cheia de coisa que nem lembrava que tava ali, e cuja existência ignorava pra não ter que lidar com a bagunça. a vida tá corrida mesmo, a rotina já tá tão exausta... se encaixar no tempo do Outro requer que você não se dê muito espaço pra sair do eixo programado [e programático]. vai que, na arrumação, você encontra um bilhete perdido, uma fotografia antiga, um poema rabiscado numa folha de caderno, ou aquele ingresso de um show que te dá vontade de fazer procurar as fotos, ligar pras pessoas, ou que te leva pro passado e aí … o que eu tinha vindo buscar nessa gaveta mesmo? a gente evita essas pausas dissonantes e vai “tocando” a vida.
até que isso virou uma grande questão porque eu tava esquecendo. esquecendo o que eu não queria esquecer, mas queria não querer lembrar. as memórias que eu tinha da minha mãe eram poucas e muito tristes, ou carregadas de culpa (o que me faz pensar que, se carrego, é possível não mais carregar).
decidi faxinar uma dessas caixas e fiquei com vontade de folhear o álbum de família que eu abria muito pouco. sou a guardiã dessas memórias entre meus irmãos. minha irmã guarda as memórias digitais (que ela manda inesperadamente, atravessando minha tarde de terça-feira com uma foto minha numa praia de férias que mandei pra ela uns anos atrás). e meu irmão guarda tudo que precisa ser guardado, no sentido prático da coisa. guarda também tudo que a gente fala. de todo modo e no sentido literal, as memórias que tinham que estar comigo, estão comigo.
surpreendemente (o que me fez perguntar porque adiei tanto esse encontro), encontrei, nesse álbum, uma mãe alegre, curtindo uma brisa no quintal num dia quente, levando os filhos pra passear na cachoeira, pra tomar um banho de mar, fazendo o que ela adorava que era ficar estirada no sol que nem lagartixa, sem protetor. já fiz isso muito junto com minha irmã, inclusive - e minha sobrinha questionava nossa sanidade enquanto trazia água pra gente não se desidratar. hoje a gente julga e se arrepende. como minha mãe se arrependia depois de mais velha. a vida é esse looping. e eu sempre lembro disso quando esqueço o protetor. encontrei também lembranças de várias festinhas de aniversário da minha infância. ela amava festas, ainda mais temáticas, e aniversários sempre eram desculpas pra comida, música, gente bebendo (ou não), se divertindo, dançando e esquecendo das dores do mundo. uma delícia e a gente ama isso igual! ela amava tomar banho ouvindo música alta quando meu pai saía e ficávamos só nós duas em casa (eu ainda era uma criança, minha irmã já era casada e meu irmão tinha saído pra estudar fora). geralmente eram sábados ou domingos, os dias sem ponteiro, e eu só sabia que era o momento do entardecer, o momento em que meu pai ia dar o passeio dos melancólicos diante do silêncio da cidade esvaziada e pacata, percorrendo a sacra viciosa. a cena que volta é aconchegante, da minha mãe com aquela música alta e a casa escura, a iluminação baixa do pôr do sol que pincelava um misto de beleza e tristeza, melancolia e liberdade. eu devia ter uns 10 anos e acho que quando ficávamos só nós duas era quando ela se sentia mais livre pra ser ela mesma. claro, não sei como ela era quando estava sozinha com as outras pessoas por motivos óbvios. tenho a sensação de que muitos adultos são mais deles mesmos perto das crianças por acharem que elas não entendem o que tá rolando. mas crianças aprendem muito pelos gestos, escutando ao redor e observando as pessoas sendo. talvez eu seja mais parecida com ela do que acho que sei que sou só nessa de observar.
mergulhada naquele passado do álbum de fotografias, toda aquela fantasia de ausência foi dando lugar a essa mãe de quem eu passei a me lembrar como sendo alguém de quem eu era um chicletinho. a mãe que eu gostava de ficar encarando se maquiar enquanto passava o lápis creon preto no olho, que eu achava lindo e que marcava o olhar com muita segurança, e o batom vermelho que “personava” determinação. uma mãe que, na verdade, soube sem saber a importância de ficar sem abrir mão do ir. de um jeito ou de outro, fez suas apostas. uma mãe que soube sem saber a importância de me dar espaço para imaginar.
encontrei uma mãe - que se antes eu sentia ausente, que só trabalhava e sempre voltava tarde - que agora parecia muito atenta aos detalhes. o cinto, o arquinho, o vestido, o biquini, a franja, o colete, a decoração da festa, as formaturas, as cartinhas guardadas. a atenção em lembrar de tirar fotos pra depois lembrar de novo das datas festivas, dos eventos da escola (minha e dela), e das poucas, mas agora presentes, viagens. a atenção na praia quando me mandava voltar porque eu tava me afastando muito da areia. a ancoragem, a segurança, o cuidado, a possibilidade da descoberta de lugares novos. mesmo não sendo uma católica praticante, tinha lá suas devoções e ficava feliz quando a gente coroava na igreja no mês de Maria, o mês das mães. achei a foto da coroação da minha irmã, mas só posso falar pelo que foi a minha própria. minha mãe fez questão de ensaiar eu e minha dupla; ela, junto da mãe da menina, da minha tia Celma (irmã do meu pai), e, possivelmente, minhas primas, irmã e minha vó nair (mãe do meu pai). essa minha avó também era minha madrinha e, sendo a neta “rapinha do tacho” - como minha mãe mesma dizia -, eu passava meus dias de semana sendo cuidada pela vó Nair enquanto meus pais trabalhavam e meus irmãos estudavam. durante esse tempo da minha infância, quando eu não tava na escola nem em casa, ficava rodando entre as casas da vó Nair e da tia Celma, que morava nos fundos, trançando pra lá e pra cá vestida em calcinhas de bunda rendada - com tanta renda que a popa ficava até fofa, que nem fralda -, com a franja suada e chamando meus primos de “indiotas” quando riam de mim. quem costurava essas calcinhas era a minha vó. eu adorava. já as férias eram reservadas pra casa da vó Diva, minha avó materna, que ficava em Realeza, cercada de primos com quem não tenho mais contato.
mergulhada naquelas memórias, não mais que de repente a mãe ausente foi dando lugar a uma mãe normal, e só entre o mãe e o normal cabe tanta coisa que nem sei. todo afeto que acompanha esse lugar do sentir-se amparada cabe ali, nessa meiuca. percebi uma mãe cercada por uma rede de mulheres que se apoiavam mutuamente, cercadas de crianças e outras mulheres mães-tias-avós-irmãs-primas-vizinhas-colegas-amigas. mulheres cercadas de mulheres. cercadas de famílias e culpas e neuroses: culpa materna, culpa feminina, culpa moral, culpa cristã. mas também de muito amor, generosidade, partilha e cuidado. cercadas de muito colo e muito amparo. mas é aquela coisa de sempre. as palavras significam mais do que dizem. redes de afetos que costuram o tecido social são marcadas por um intrincamento oculto, um fio invisível que segura os lados. cabe à gente mesma sentir qual é a força que sustenta os nós.
lembro da minha formatura da 4ª série na escola. eu tinha uns 10 anos, e tava chateada porque a mãe das minhas amigas tinham feito penteados lindos pra apresentação do coral da turma, e eu me arrumei sozinha do jeito que deu. tenho a sensação de que sempre foi assim. embora no álbum, a minha foto de quadrilha de quando eu tinha 5 anos, com a cara pintada, as tranças bem feitas e a foto no meio da roseira do quintal, exista pra me lembrar que ali, onde eu também achava ser vazio, tinha amparo. feliz foi minha mãe que guardou essas memórias. na apresentação da formatura tava me sentindo feia e aquelas coisas da idade (será que passa?). minha mãe chegou do trabalho bem em cima da hora de ir pra festa, não tinha tido tempo de muita coisa, mas tava lá. lembro que ficou emocionada com a apresentação do coral e com a formatura em si. e eu acho que dei tudo de mim praquele momento, mesmo não me sentindo bonita com o meu cabelo. e digo isso porque eu tenho a memória de ver, sem ser notada, a diretora cochichando com alguém, apontando pra mim e balançando a cabeça afirmativamente, como se eu estivesse sendo muito comovente e bem sucedida no meu papel de filha. saí feliz. mas meu momento de glória mesmo foi o da minha coroação do mês de Maria. mesmo não conhecendo Maria na época, eu brilhei. e lembro da minha mãe deslumbrada de amor. mas não se engane, ela era relativamente contida nas suas manifestações de sentimento, alegria, êxtase, tristeza. aprendi assim a ler nas entrelinhas ou a (re)escrever notas entre elas. soube, vendo as fotos, que foram momentos importantes todos aqueles que ela fizera questão de registrar. o que me faz lembrar da minha irmã, que sempre cobra pra que eu apareça nas fotos que mando nas viagens, pra ter recordação de mim sendo feliz.
descobri uma mãe atenta não somente ao registro, mas em todos os detalhes registrados. esteticamente e estrategicamente atenta. uma mulher trabalhadora, persistente, dedicada, que amava professorar, sempre cercada de outras mulheres e crias. cansada, porém satisfeita e amada. já não me importa se ela era feliz porque hoje a sinto amada. escutei em algum lugar que o amor genuíno é o amor a quem já morreu. pois é o amor do qual não se espera nada em troca. não espero nada mais nem dela nem de mim. dentre todas as possibilidades de vida, de cenas e de arquitetura dos quadros na parede, a gente escolheu essa disposição. tenho agora lembranças de uma mãe que fez o que deu. e deu pra fazer muito. e esses registros me fizeram perceber a importância de permanecer fazendo o que quero. percebi que, embora a gente não consiga se livrar de algumas das demandas do querer do Outro, mesmo não querendo, talvez negociações precisem ser feitas em alguns momentos pra se querer melhor. os registros do álbum me mostraram o valor e a importância de manter e fortalecer as redes de afeto que me engendram. encontrei não uma, mas várias mães, e pensei que aquele decolonial que a gente busca no livro são essas mulheres da nossa família que se juntam pra sustentar um edifício. talvez precisemos repensar essa metáfora (ou talvez a metáfora seja só um ato falho sobre a casa). troquemos pra aranhas tecendo as suas teias e mudemos os rumos da cena.
achei uma foto da minha mãe junto com as outras professoras na última escola em que ela lecionou. não sei se era algum evento específico, ou obra do acaso, mas minha mãe saiu posicionada bem no meio da foto, ao centro e sentada. achei curioso. ela tava no meio não só da foto, mas de todas aquelas mulheres. seria coincidência? ou era um dia em sua homenagem e que, por isso, ela foi minuciosamente posicionada no centro? contei 3 de cada lado na cadeira, 6 ao todo. 16 em pé atrás, 8 de cada lado da minha mãe. total de 22 mulheres. todas professoras. 23 com ela. dei um pulo. ela nasceu no dia 23 e partiu no dia 23. não sei se é o acaso, se eu fico buscando um sentido pra tudo, ou se um pouco dos dois. mas aquela foto ganhou um novo contorno nessa nova história que eu quero contar.

minha mãe sentada ao centro, de calça e blusa jeans, cabelo curto e sandália vermelha.
adiei o quanto pude esse encontro porque achei que seria insuportavelmente doloroso. no fim, encontrei a melhor mãe que eu poderia ter, (re)lembrei outros lugares de amparo e perdoei o meu passado, que agora já não parece um filme chiado em preto em branco, com uma música clássica melodramática. mas uma série colorida (que escrevi dolorida em ato falho…), com Elis Regina de trilha sonora, e com um figurino bem atual. uma série da vida ordinária que eu tanto amo, e que caberia facilmente num catálogo de netflix, acompanhando aquelas que eu assisto me reconhecendo. lembrei que o velório dela foi o mais cheio de que já tive notícia (coisas de cidade pequena), e, se o que importa é como se vive e não como se morre, percebi que em vida ela foi amada por aquelas tantas pessoas que (com)partilharam desse sentimento de se afetar por ela. ela que era tanto mesmo dizendo tão pouco. ela que era o amor nas entrelinhas. ela que era a que amava melhor (e que talvez por isso fosse tão doloroso) - a gente goza onde a gente sofre.
(…)
e a gente quase esquece de se perguntar, e o pai, onde estava o pai que a culpa por não estar é sempre da mãe?









“Só depois que eu ia entender: o que parece falta de sentido - é o sentido.”
(Clarice Lispector)
criei uma newslettinha (uma revista mensal) pra preencher um cado dos meus vazios. ela se chama Terra: substantivo feminino. nela, vou falar de afetos, feminismos e pachamama, e (com)partilhar um pouco das minhas andanças transitórias entre todos esses mundos, real, imaginário e simbólico. uma parca tentativa de tentar trazer significado e dar um sentido justamente praquilo que não tem nenhum sentido: a vida.
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