Talita Gantus
Meu eu cientista
Atualizado: 30 de jun. de 2020
Eu não sei porque eu escolhi cursar engenharia geológica. Na verdade, eu sei, mas só fui entender isso 9 anos depois de ter entrado na faculdade, prestes a defender meu mestrado, numa crise de ansiedade depois de divagar muito sobre aquela bendita máxima: “qual o sentido da minha existência?”
Bom, esse questionamento foi solucionado depois de algumas leituras filosóficas, e foi difícil constatar que não, não existe uma missão divina para estarmos aqui. Estamos. Por isso somos. Tudo bem, isso já foi superado.
Mas precisei de alguns meses de terapia pra entender como eu tinha ido parar ali: naquele mestrado que eu não gostava, recebendo uma bolsa de pesquisa que mal pagava minhas contas, e sem a possibilidade de expandir minhas potencialidades dentro da minha área de formação. Pra superar esse vazio, fui fazer teatro, escrever poesia e buscar algum nicho pra estudar sobre política e resgatar meu espírito militante da época da faculdade (sim, eu sou a pessoa esquisita que curte reuniões e assembleias de movimentos sociais). Mas eu fui criando ojeriza de abrir aquele arquivo word da minha dissertação. No finalzinho eu sentia palpitações ao entrar no laboratório onde fiz meus ensaios de solo.
A terapia foi incrível (agradeço sempre àquela mulher, inclusive, saudades dos cafés durante os atendimentos) por ter me feito entender como eu tinha ido parar ali. A sensação que eu tinha, até então, era a de que tinham me soltado num barco à deriva, apagada, e que eu tinha acordado naquele novo lugar. Não me lembro muito bem dos momentos em que certas decisões foram tomadas. Tipo quando marquei o x, aos 19 anos, pra escolher o curso na faculdade que ia fazer parte da construção da Talita de hoje.
Eu nunca tive aula de sociologia nem de filosofia na escola. Nas aulas de história, eu aprendi que os portugueses “conquistaram o direito” de espoliação de terras brasileiras em troca de espelhos. Juro! Também não aprendi sobre as semelhanças das formas de exploração entre nós e nossos hermanos de continente, uma visão que escancara as veias abertas desta América Latina.
Eu amava português, literatura, geografia, história, biologia e educação ambiental. Não era boa em matemática, era realmente péssima em física e odiava química inorgânica. Lembro da Talita de 11 anos deitada na cama chorando aos prantos com o final do livro ‘Os miseráveis’, de Victor Hugo. Nunca esqueço da comoção que esse livro me causou. Claramente eu era uma pessoa de humanas.
A Talita de 18 anos, saída de Manhuaçu, caiu de paraquedas na engenharia geológica. A terapia me ajudou a entender o porquê, e meus acúmulos pessoais, por meio de vivências, leituras, conversas, observação e curiosidade, me ajudaram a descobrir como ressignificar o arrependimento que eu sentia. Eu não queria me arrepender. Eu queria simplesmente fazer alguma coisa que gostava, que não era o que eu estava fazendo, sem me arrepender do caminho que eu tinha percorrido.
O mais perto que cheguei da engenharia geológica na escola foi na educação ambiental. Eu tinha cerca de 12 anos e amava essa matéria, e virei a “queridinha” da professora. Ela me levou a me embrenhar no mato atrás de nascentes de rios, pra fazer eu nem lembro o quê, mas lembro de duas palavras-chave: bauxita e macaco mucuri (ou mono-carvoeiro). Se eu fosse fazer uma transcrição livre hoje do que foi esse trabalho com essas duas palavras que me vêm à mente, seria: “abaixo a mineração de bauxita, salve os mucuris da extinção!”
Lembro de desenhar cartazes do Rio Manhuaçu, que corta a cidade, numa propaganda do antes e depois da limpeza que cobrávamos da prefeitura. Um rio colorido de lápis de cor marrom era o hoje da época, e o de lápis de cor azul era o do futuro. Queríamos o rio não poluído de antes da ocupação humana. Esse rio que, quando enchia nas inundações de verão, deixava inúmeras pessoas desabrigadas e marcas marrom-alaranjadas nas paredes das casas. O rio hoje continua marrom e continua causando os mesmos desastres: ecos não solucionados do passado reverberando no presente.
Esses trabalhos com minha professora de educação ambiental me renderam, aos 13 anos, uma condecoração no Codema, o Conselho Municipal de Conservação do Meio Ambiente. Nada de tão honrado assim, definitivamente bem distante de ser a Greta manhuaçuense. Provavelmente era algum prêmio de participação de escolas, e eu era uma aluna especialmente dedicada a essa matéria porque gostava muito dos trabalhos de campo. Afinal, foram os únicos e poucos momentos em que saí do formato de educação bancária que nunca funcionaram muito bem pra mim. Na verdade, não funciona pra ninguém, não é uma educação emancipatória, e por isso Paulo Freire teceu tantas críticas sobre ele.
Lembro que meu pai mandou colocar essa condecoração num quadro e ostentava pra todo mundo que ia lá em casa. Meu pai não teve a oportunidade de fazer faculdade, mas ele ficava extremamente feliz com nossas conquistas educacionais, por mais bobas que pudessem parecer para um observador qualquer.
Foi esse gosto por mato que me manteve na engenharia geológica até obter meu diploma. Eu amo sair explicando pras pessoas leigas no assunto, numa caminhada qualquer rumo à cachoeira, sobre como aquelas rochas se formaram. Adoro interpretar paisagens. Mas foi muito difícil sobreviver a 4 cálculos, 6 físicas, 2 químicas e 3 geometrias na faculdade. Não fossem as amizades incríveis que fiz durante o curso (acho que poucas pessoas saem da geologia sem amar a geogalera), eu teria desistido nos primeiros anos, sem ter a oportunidade de viver a vida pós ciclo básico.
O desenvolvimento de senso crítico sobre a sociedade, portanto, não veio da educação formal que tive da infância até a vida adulta. Depois entendi que isso é um projeto de alienação da nossa condição, que suprime nossas potencialidades como seres sociais. Me formei e o caminho de entrada no mestrado foi mais ou menos como o da graduação. Fui sendo levada pelas circunstâncias sem refletir muito sobre elas.
A terapia me ajudou a superar um momento de crise existencial e a não jogar tudo pro alto e ir morar na praia fazendo qualquer coisa que fosse. Não que essa não fosse uma ótima escolha (adoraria), mas eu tinha sede de ser força de ação.
Participei de um projeto de extensão durante o mestrado que foi o que tornou esse período acadêmico mais leve, e que me despertou a crença na práxis como ferramenta para transformar o mundo. E, na verdade, eu só fui descobrir que o nome disso era práxis, e o que era práxis, muito tempo depois. Eu sentia necessidade de alguma coisa que não sabia nomear.
Queria diminuir o asco crescente que vinha criando de um ambiente universitário que tinha se apresentado extremamente machista e misógino, elitista, preso em suas redomas de vidro, e que formava pessoas pra fazer a engrenagem girar.
Eu fui formada engenheira geóloga pra trabalhar na mineração. É assim que funciona no coração do quadrilátero ferrífero. Mas não era isso que eu queria quando formei. E hoje quero menos ainda, e essa é uma das poucas certezas que tenho na vida. Apesar de algumas pessoas ainda insistirem em me mandar vagas de emprego que, claramente, não se identificam com minhas orientações políticas e, portanto, pessoais: socialista, feminista marxista e ambientalista.
Estou no segundo ano de doutorado e nem sei o que quero exatamente. Apesar de pós-graduanda e pesquisadora independente, não tenho intenção de ser professora universitária concursada, com dedicação exclusiva, limitada por burocracias de todos os lados. Também não tenho a intenção de entupir meu lattes de pesquisas hegemônicas sem propósito. Não caibo em caixinhas e ainda tenho dificuldades de aceitar isso e suplantar as expectativas jogadas em cima de mim. De vez em quando essas expectativas alheias acertam minha testa como um tijolo, me fazem cair de cabeça no chão e levantar meio zonza. Essa sensação aparece nos momentos em que estou fragilizada e perco o prumo pra lidar com esse limbo profissional que pareço viver (culpa do capitalismo que nos reifica, coisifica, e aliena nossa força de trabalho).
Apesar de fazer várias coisinhas não consideradas trabalho, eu amo o que faço. Amo meu doutorado que se torna cada dia mais contra-hegemônico. Amo dar aulas como voluntária. Amo as pesquisas independentes e participar de movimentos sociais. Isso tudo me move!
Tenho buscado ressiginificar a pesquisa dentro das geociências. E tenho conseguido, embora ainda enfrente alguns percalços. Numa disciplina de métodos científicos, no doutorado, eu escutei de um professor: sua tese serve para obter um título de doutora (pra prestar concurso de professora depois), não pra mudar o mundo. Ser desestimulada por professores acontece muito. Não vou mudar o mundo com uma tese, obviamente, mas gostaria pelo menos de mudar a mim mesma durante esse processo. Assim a gente vai mudando as pessoas, os modos de fazer pesquisa, de ensinar. Isso é dialética, e a práxis não seria práxis se não fosse dialética. Assim transformamos.
Fui questionada por professores da geologia que não acham que minha pesquisa daria artigos em revistas científicas conceituadas. Mais uma coisa a ser desconstruída: bem conceituado pra quem?
A pesquisa interdisciplinar é difícil porque ela não te permite caber numa prateleira temática. É difícil de todos os lados. E minha pesquisa vive num limbo, assim como eu. Isso me faz sentir inacabada e sempre insegura pra ocupar um lugar de fala.
Os preconceitos são tão ardilosos que ocupam todos os interstícios. Muitas vezes, dependendo de com quem eu falo, não sou levada a sério. Sou lida de acordo com os estereótipos no qual tentam, forçadamente, me enquadrar: aos 30 mas com carinha de 20 e poucos, all star, unhas sem pintar, brincos de melancia e tatuagens nos braços: “Quem essa menina pensa que é?”
Na verdade, pouco importaria se eu usasse maquiagem, salto, coque no cabelo e terninho: no meio científico não se costuma dar muita credibilidade a mulheres jovens. Esses homens, sentados em cima de seus tronos de certezas frágeis, recusam refutações de modo bastante contundente. Ainda mais se proferidas por alguém com a minha aparência. Como se eloquência dependesse de moda.
Hoje penso que a geologia tem sorte em ter uma geóloga como eu, pra tornar a preciosidade que é a compreensão da Terra um pouco mais humanista. [Sim, um momento autovalorização, porque ninguém vai fazer isso por mim se eu não fizer].
Não entendo por que os seres humanos e a economia política não contam nas análises dentro do meu curso. O sistema capitalista cava crateras de minérios, espolia a natureza, destrói biodiversidades e explora a classe trabalhadora em troca de toneladas de dinheiro virtual que enche a carteira financeira de uma porcentagem muito pequena de acionistas: “mas a geologia não tem nada com seres humanos”. Ora, geramos tanto impacto na paisagem quanto processos erosivos que duram milhares de anos!
Sorte, também, tenho eu, por não estar sozinha nessa caminhada rumo a um outro mundo possível, e a uma outra geologia possível. Sorte tenho eu, por ter ao meu lado mulheres incríveis que dividem lutas, sonhos, ideias mirabolantes e muito trabalho no projeto revolucionário que é a_Ponte.
Ano passado eu participei de um encontro de pesquisadores da mineração crítica na Escola Florestan Fernandes. Eram pesquisadores de todo o Brasil num encontro organizado pelo Movimento pela Soberania Popular na Mineração. Lá, conheci um professor de geografia de Minas que atuava contra a mineração de bauxita que avançava ilegalmente em uma área de proteção ambiental. E, veja bem como o mundo dá voltas: Manhuaçu se inseria ali. Era a mesma luta travada desde a época da escola, quando me embrenhei no mato com minha professora de educação ambiental.
Naquele dia tive certeza de que estava do lado certo: a barricada só tem dois lados. A luta continua contra um sistema que avança sobre nós, arreganhando as veias latino-americanas e devorando as entranhas da classe trabalhadora. Sigo firme. Seguimos, pois sozinha não estou. Agradeço às mulheres que me acompanham nessa jornada. A revolução será feminista, antirracista, anti-imperialista e anticapitalista.
