Talita Gantus
Números ou letras? Quem sou?
Atualizado: 10 de ago. de 2020
Passando o cartão pra pagar as compras em um totem de autoatendimento, repito o gesto premeditado de quem passa continuamente por esse rito. “CPF na nota?” me pergunta a tela, ecoando a antiga voz da atendente que foi substituída por aquela máquina.
Quem se dirige ao totem de compras não enfrenta longas filas, e não passa pelo olhar da atendente. Pra mim o mais doído das idas ao supermercado é relembrar das péssimas condições de trabalho a que aquelas pessoas, na maioria negras, estão submetidas. Olhar nos olhos cansados das atendentes às vezes me dói. Enquanto passo aqueles produtos um tanto quanto dispensáveis (“será que preciso desse vinho?!”), penso o quanto o mundo é desigual e quão longo é o caminho que temos pela frente. “Quantos sacos de arroz cabem no preço dessa garrafa de vinho?!” Isso sempre ecoa na minha mente, não só no supermercado, mas a qualquer volta pela cidade, acompanhada de um olhar ao mesmo tempo atento, ao mesmo tempo viajante.
As filas menos longas do totem se devem em parte ao fato de ter um teto máximo de volumes permitido, e em parte pela preguiça das pessoas de embalarem elas mesmas suas próprias compras, nas mil sacolas plásticas dentro de sacolas plásticas. Então elas preferem se dirigir às caixas de cobrança manuais, que é onde tem um embalador à postos.
Melhor ainda, mais rápido pra mim, menos tempo dentro daquele estabelecimento permanentemente iluminado com luzes brancas, fortes, corredores que me confundem... sempre saio dali com uma leve dor de cabeça, quase meio zonza… prateleiras que mais parecem que são trocadas de lugar pra que a gente se perca e gaste mais tempo procurando o que buscamos… infindáveis produtos tão idênticos que mal se é possível distinguí-los, principalmente por não entendermos a língua dos rótulos. Me lembra os shoppings e o quanto também os odeio. E uma sensação de que se gasta horas da vida ali dentro, pra sair com um tantinho de compra que cabe numa mochila, e que te custa 10% do que vale o salário mínimo.
Penso tudo isso enquanto repito o processo mecânico de posicionar o código de barras dos produtos no laser pra leitura do preço, e de colocar o produto computado na caixa ao lado. Processo finalizado, penso na mais de uma hora que demorei encontrando os produtos na prateleira, previamente elencados numa lista. Mesmo com a lista na mão, esse processo de encontro com os produtos é árduo. Em contrapartida, poucos minutos são gastos no ato do pagamento. Quanto será de vida que as pessoas perdem aqui?... enquanto esse mesmo dono se enriquece com um dinheiro contido dentro desse pedaço de plástico com um chip?... vindo de um salário que cai na minha conta traduzido em números que não se materializarão?... eu não pego nesses números. mas eles viram esse montinho de produtos diversos.
Que brisa! Repito o gesto premeditado de quem passa continuamente por esse rito. “CPF na nota?” me pergunta a tela novamente, ecoando, novamente, a antiga voz da atendente que foi substituída por aquela máquina. “Não, obrigada, não quero CPF na nota!”. Pensei, embora calada. A tela me solicita o cartão e a senha. Digito distraidamente alguns números e escuto um bip de negado. “Senha inválida.” Me dou conta de que digitei meu CPF no lugar da senha. Isso me soou absurdamente estranho. O número do CPF na ponta dos dedos, como o nome na ponta da língua ao me apresentar. “Seria eu um número? Ou um jogral de letras?” Volto desses pensamentos, relembro a senha, pego as compras, caminho em direção à bicicleta e rumo pra casa.
Seria eu um número?
Essa pergunta ecoa na minha mente. Me pediu a senha e, distraidamente, dei meu CPF. Quantas vezes nessa vida me solicitaram números pra eu provar que eu sou eu? CPF, identidade, carteira de habilitação, número de matrícula, número da matrícula nova, e outra, número do cartão, outro cartão, senha, outra senha, agora coloca letra, códigos. E pelo menos uma maiúscula pra aumentar a segurança. Queria poder apagar tantas senhas da minha mente pra dar mais espaço pra poesias.
Enquanto pedalava desatenta, lembrei de um dia em que fui ao banco abrir uma conta, há meses atrás, e tive dificuldades de provar que eu era eu. E de que aqueles números na minha conta eram, de certo modo, meus. A atendente me solicitou o comprovante de renda. Entreguei o contrato-recibo em que consto como pesquisadora bolsista do CNPq. “Não tem pesquisadora aqui na lista de profissões do banco”. Disse, ríspida e seca, depois de 30 minutos sentada registrando dados infinitos. “Tudo bem, senhora, mas essa profissão existe, e é basicamente isso que uma cientista faz.” “Mas não tem na lista do banco. Você tem algum outro trabalho?” “Olha, eu sou professora, tenho um documento que registra isso, mas dou aulas como voluntária, então não tenho comprovante de renda.” “Ah, então não conta.” Me senti podada de todas as minhas possibilidades enquanto ser humano ali, naquela visão reducionista do que era um trabalho e do que seria pra eles uma profissão. Quem sou eu nisso, então?
Sou números? e preciso de números que provam que esses números sou eu? sou números e letras? ou números ou letras? eu sou eu? quem eu sou, afinal?
Essa pergunta retórica me ecoou durante o percurso de volta do supermercardo pra casa. Todo momento de falta de sentido é exatamente a assustadora certeza de que ali há o sentido, mas que eu não o alcanço.
Ao chegar em casa, a pergunta ecoando se seguiu de um silêncio. Um profundo silêncio. O som inaudível da casa era como a de uma agulha rodando no disco de vinil quando a faixa de música já acabou. Se a vida tivesse trilha sonora, aquele momento seria como os estalidos no vinil que precedem a faixa de música nova e que deixam no ar a lancinante potencialidade que aquele silêncio premedita. Olhava ao redor, no quase soturno escurecer do entardecer na minha pequena casa de dois cômodos, e eu não cabia. Eu não cabia.
Já tinha experimentado a sensação de lugar. Mas naquele momento aquela sensação veio vívida como o coração que pulsa quando experimenta a adrenalina da paixão. Me sentia estranhamente localizada, pertencente, embora antes restringida, agora ampliada. Eu, aqui, na minha casa, localizada em um bairro, em uma cidade, em um planeta no Mundo. A Terra. Lembro de mim, criança, solitária, na varanda da casa dos meus pais olhando a rua nos fins de tarde vazios de domingo, com aquele sentimento de desnorteio que o cair do dia me traz. Escutei de uma psicanalista que esse sentimento é compartilhado, em grande medida, pela espécie humana e reflete um pouco o receio da escuridão da noite que desponta. Como uma atenção ao desconhecido universo das sombras. “Uma certa conexão com a ancestralidade antepassada?” Pensei! Não soube responder. Ouvi a psicanalista pelo rádio, então não tive oportunidade de perguntar. Lembro de mim, criança, solitária, na varanda da casa dos meus pais olhando a rua nos fins de tarde vazios de domingo e tentando me localizar nesse universo. Foi quando passei a experimentar o senso de lugar. Mas agora era diferente. Antes eu me localizava me restringindo, me trazendo de volta da dimensão para a qual eu viajava enquanto olhava, por horas, a rua vazia. Mas naquele momento eu me localizava me ampliando. Pensei. Era essa a principal e importante distinção que separava esses momentos tão distanciados na escala temporal, mas tão próximos na amplitude sentimental. Era o meu eu experienciando o estar no Mundo de formas distintas, enquanto meu eu do presente se distanciava do meu eu do passado por um intervalo de 20 anos. Embora antes tentando encontrar uma forma de no Mundo caber, agora entendendo que essa mansa loucura era a forma sadia de caber num sistema. Viver não é coragem, saber que se vive é a coragem.
Não sei bem dizer em que momento exatamente os números pararam de fazer sentido. Mas o CPF me levou até o relógio e logo aquele modo de organização da vida deixou de representar pra mim qualquer senso de realidade. Os números não diziam nada sobre meu verdadeiro eu e as horas vendidas em troca de números virtuais não compensavam a vida que se esvaía pelo ralo. Como o lugar, o tempo se tornou palpável e eu queria sumir de dentro do relógio.
De repente, eu me tornei atenta. Um sentimento passou a me inundar, a atenção de viver que, mais que atenção à vida, era o processo de vida em mim. Estaria eu, até então, vivendo não a verdade, mas o mito da verdade? Eu não podia mais negar. O quê? Eu não sei bem, só sei que não podia mais…
Algo havia se transformado e tudo passou a ser passível de questionamento. O que eu vivia era o mais puro, límpido, processo do instante. Do agora. E o agora eu nunca tinha imaginado. As palavras planejadas, pensadas, os gestos arquitetados, a conversa ensaiada, a morte. Tudo isso era imaginável pois era o futuro. O futuro está aberto e é imaginável. E para imaginar, ah, pra isso eu tivera tempo. Tivera bastante tempo. Mas nunca pensara sobre o instante do agora. Entre eu e o presente não há intervalo nem tempo de preparo; é agora, em mim.
Morrer eu sabia de antemão e morrer era o futuro esperado. Mas o agora… ah, o agora não se pretende até o momento em que chega e desabrocha e te inunda. Nunca antes eu soubera que a hora de viver não tem palavra. O momento em que eu vivia, ali, recém chegada do supermercado, a mochila com as compras lançada no chão, aquela casa de dois cômodos tão pequena quanto quão grande já tinha sido. Olhava ao redor e eu não cabia. Eu não cabia. Não era na casa que eu não cabia, não cabia mais nas métricas numéricas do Mundo. Preço, hora, dados… quem, até então, tinha sido eu, afinal?! Não havia mais tempo a perder. A hora de viver estava sendo tão já que eu encostava a boca na matéria da vida. Finalmente sucumbi, e o momento tornou-se um agora. Respirei fundo, e, no silêncio entre o inspirar e o expirar, escutei a respiração do mundo. Perder-se é um achar-se perigoso e delicioso. E o viver, a partir daquele instante que me escapava entre os dedos, ganhou um novo compasso de medida.
Talvez se eu criar e escrever sobre a vida, a vida passe a ter um sentido em ser.
