Talita Gantus
O poder do erótico

Já começo esse texto dizendo que eu estou longe de ter um corpo padrão. O enquadramento pode ser determinante pra ocultar ou realçar certos aspectos. Tenho uma barriga saliente e com gorduras protuberantes, algumas pelanquinhas na perna e celulites na bunda que nem os meus 6 anos de ciclista e os 10 anos sem refrigerante foram suficientes para enrijecer. Tenho o corpo marcado por estrias e microvarizes que mais parecem uma bacia hidrográfica. Juntas, desenham mapas na minha pele que levam aos rios do meu passado e a todos esses 30 e tantos anos de um corpo que, embora fora do padrão, aprendi a amar. É com ele que luto muay thai, jogo capoeira e pratico meu yoga, sempre com menor regularidade do que gostaria, mas corpo o qual considero muito ativo e saudável, ainda que não seja um corpo magro ou definido. Já há muitos anos dietas não fazem parte da minha vida. Se eu me sinto triste eu como doce e ultimamente tenho comido doces com uma certa frequência. Efemeridades da vida. Minha cozinha é afetiva e não uma planilha de calorias. E isso é bem libertador. Confesso que esse desapego foi lento e difícil, mas no tempo da maturidade que deveria ter. Saliento novamente que fotos escondem muita coisa e, apesar desse preâmbulo, tenho pensado, na verdade, sobre outra coisa.
Há algum tempo venho refletindo sobre a dicotomia entre corpo e mente, sexualidade e intelectualidade. A colonialidade aliada ao patriarcado faz com que nós, mulheres, nos enxerguemos como corpos dessexualizados e como mentes desencarnadas. Aprendi com Audre Lorde, a quem tenho revisitado com constância, sobre como o erótico nos foi sequestrado da vida cotidiana e principalmente do trabalho, fazendo com o que o prazer, quando possível, muitas vezes venha acompanhado de culpa. Quando não somos nós a nos colocarmos em posição desejante consciente, julgamos aquela que assim o faz sem percebermos que, no fundo, inconscientemente, aquilo que apontamos no outro como equivocado diz mais sobre nós e nossas vontades ocultas e desencorajadas. Cada um goza como lhe convém; não o gozo orgástico, mas aquele simbólico. Desde quando entendi vagamente que o desejo é também discursivo, percebi que vontades, muitas vezes, antecipam a própria materialidade do corpo. Já me adianto a contra-argumentos afirmando que ainda que discursivo, há um lastro material no modo como desejamos.
O roteiro das práticas coloniais, no meio acadêmico por onde caminho há mais de década, não dá espaço para que eros possa ter seu lugar. O prazer pode ser obtido de diversas formas e eu posso jurar que ler, escrever, escutar e falar é capaz de me fazer sentir tesão. Tesão pela vida, tesão pelas posições que ocupamos, tesão pelas funções que desempenhamos, tesão pelas pessoas com quem trocamos [até mesmo] ideias e não necessariamente fluidos corpóreos. Alguns anos em análise me deram ferramentas para entender que me sentir desejada – não pelo meu corpo visto como um objeto reificado, mas como um objeto simbólico e encarnado em relação ao Outro – faz com que eu mesma me ame mais e deseje mais estar viva. Faz com que eu deseje o outro por me sentir desejada. Desejada pelo que sou, escrevo, falo. Desejada pela maneira como me coloco no mundo.
Audre Lorde me ensinou que o erótico está presente em tudo aquilo que empreendemos certo investimento libidinal. No roteiro das práticas coloniais, que são também patriarcais, a sexualidade da mulher em uma posição desejante é vista como vulgaridade, pois a colonialidade nos faz enxergar as formas de vida como passíveis de serem subjugadas, destituídas do seu lugar de ser no mundo, usadas e descartadas. Se eu desejo e expresso isso, na cultura do patriarcado, deixo de ser alguém para me tornar algo. Por isso não há espaço para a mulher que é sensual e também é mãe. Como se os peitos por onde saem leite que alimenta a alma e o corpo, não fossem as mesmas divinas tetas que jorram leite na cara dos caretas e dos libertinos.
É proibido ser profana e, ao mesmo tempo, ocupar lugares que exigem de nós certa postura conservadora. Como se não houvesse espaço para a ambiguidade e a pluralidade de versões que somos e que podemos vir a ser. Como se a mulher que rebola a bunda não pudesse ser também a mulher lê clássicos da filosofia e que quer ser cientista. Como se aquela que posa nua não pudesse também criar seus filhos honestamente – temos visto esse argumento ser utilizado nas mãos de advogados que anexam fotos sensuais em processos para retirar das mães a guarda de seus filhos. Não há espaço para a mulher desejante, inclusive se a mulher que deseja também sentir tesão pela e na sua intelectualidade. Mulheres empoderadas são perigosas e por isso o patriarcado faz questão de dissociar a demanda erótica de todas as áreas vitais de nossas vidas, com exceção do sexo. Como aprendi com Audre Lorde, precisamos avaliar a qualidade de todos os aspectos de nossa vida e nosso trabalho, e de como nos movemos neles e até eles. Se é o desejo, sempre faltante, que nos move, e se o inconsciente que deseja ganha morada em nosso corpo, por que o corpo que pensa não pode ser também o corpo que goza? É preciso sexualizar o intelecto e corporificar o desejo.