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  • Foto do escritorTalita Gantus

Carta ao meu alter ego

Atualizado: 31 de mai. de 2020

Nem sei mais como tem sido os dias. Há algumas semanas eu fui atropelando alguns costumes e rotinas, inserindo novos, testando uns e deixando outros pra trás sem perceber.

Há algum tempo durante a pandemia, que não lembro quando, venho tentando ressignificar a ideia de abandonar o apego ao relógio. Afinal, o tempo é só mais uma construção social produto da nossa mente humana.


Desde que escutei sobre arquétipos, pela minha professora de yoga, comecei a pesquisar mais sobre e passei a enxergar muita coisa na minha vida com outros olhos. Depois fui descobrir que essa é a ala da psicologia do Jung, que muitos chamam de "mística". Arquétipos seriam imagens que dão sentido às histórias passadas entre gerações, o que forma nosso conhecimento e o imaginário do inconsciente coletivo. Seria a nossa necessidade de estabelecer uma imagem pra alguma coisa fazer sentido na vida. Ou não necessariamente aquilo, mas ideia que criada daquilo. E não precisa ser uma coisa física, material, pode ser imaterial, imaginária. Tipo deus!


Deus, quando, com D maiúsculo, possui uma representação pra algumas pessoas, que não pra outras. Algumas chamam de Alá - embora seja importante pontuar também a construção do Deus homem na sociedade patriarcal. Algumas de Shiva. Outras acreditam em várias deusas e deuses. Algumas acreditam só em deusas. Ou em seres encantados da floresta. Em orixás. Tudo isso representa, na verdade, a nossa necessidade de criar arquétipos, usar iconografia, dar uma representação simbólica pro amor.


Talvez a dificuldade de enxergar todas essas múltiplas possibilidades (e respeitá-las) seja inerentemente humana, como aquela vulnerabilidade que faz a gente seguir o efeito manada. Mesmo que seja marchando rumo ao ódio. E talvez por isso algumas pessoas estejam hoje jogando gente na vala ao mesmo tempo em que jogam dinheiro pro altar desse deus no qual julgam acreditar. E que julgam ser amor. Mas na verdade é uma representação totalmente vazia de significado.


Algumas pessoas, que conseguem fugir da vala, acabam se doando a essa simbologia vazia porque é como se fosse a única salvação pra vida ser menos doída. Seria o que a igreja neopentecostal, por exemplo, faz em alguns locais onde existe a ausência do Estado. Elas suprem esse vazio e sugam a alma dessas pessoas.


Pensar no Estado me fez pensar como ele também pode representar alguma coisa bem imaginária, como as leis, a democracia. Inclusive, penso que preto pobre e favelado que toma baculejo da polícia, que não tem garantia de direito à cidade e a uma vida digna, não se sente vivendo na mesma democracia que o homem branco rico.


Imaginário também é o certo e o errado, o bem e o mal, a nossa mania de estabelecer dualidades e se fixar nelas. O dinheiro é tão imaginário que - olha que louco isso - ele flutua hoje por um mercado financeiro virtual. Uma situação atípica pode fazer nosso 1 real valer mais ou menos amanhã. E aí vem o tempo, mais uma pegadinha do nosso imaginário coletivo.


E o coletivo - claramente, querida amiga - exerce muita influência sobre nossas ações individuais. Isso pode ser facilmente exemplificado com o fato de que só mulheres usam batom ou têm cabelos grandes e pernas depiladas, de que o sucesso como ser humano se traduz em um emprego que te pague bem (por mais alienada que seja essa força de trabalho). E a que ponto chegamos: numa horda de jovens adultos frustrados, grudados em nossos smartphones, e que se sentem mal quando trocam o almoço por tapioca, o lanche da tarde por arroz com feijão, e que tomam café da manhã 8 da noite. Os jovens que sentem libertos na sexta-feira às 5 da tarde e que entope as redes sociais com #sextou.


Não tô criticando o #sextou, mas sim a construção simbólica que existe por trás dele. É uma amarra imaginária. Estamos presos em correntes pelo tempo! O tempo! Socialmente construído e totalmente relativo. Estamos presos por amarras invisíveis ao trabalho de 8 às 17h, produzindo alguma coisa material pra fazer sentido pra sociedade. Pra você sentir que cumpriu seu papel.


E aí você se sente mal porque gasta 2 horas preparando o almoço e lavando a louça… Para pra tomar um café ou respirar e um ar, ou pra fazer a digestão, e aí dá um estalo, “putz, mais 1 hora já se foi”. Se sente mal porque pensa ser inútil o trabalho não contabilizado que você desempenha pra que sua vida funcione, como: se alimentar (necessidade básica 2, vindo logo atrás de beber água); entreter as crianças enquanto tenta e não consegue “trabalhar”; dar atenção pro gato; colocar ração pro cachorro; aguar as plantas bem no meio da tarde… nada disso parece ser um trabalho útil.


A gente abdica da nossa autonomia alimentar, de comprar e preparar nosso próprio alimento, compreender o percurso que ele fez, pra ter mais horas livre pro trabalho, ou pra perder atrás de telas quando atingirmos nosso teto de 5 da tarde. Que é quando abrimos uma cerveja e gritamos: agora eu estou livre!


Essa amarra invisível que é o tempo: a hora de parar de trabalhar, a época de casar, a idade de ter filhos, o horário de cada refeição, dormir não porque tem sono, mas porque tá na hora de dormir porque tem a hora de acordar (que muitas vezes nem é a que seu corpo gostaria que fosse).


E por mais que eu me diga super consciente dessas jaulas invisíveis, super libertária do papel que a sociedade espera que eu desempenhe. Por mais que eu me julgue entendedora e seja a palestrinha de que: precisamos desconstruir do imaginário coletivo as nossas amarras sociais - eu caio nessa cilada. Sim, caio, várias vezes. Todas caímos, porque o social reflete (n)o individual. A sua socialização exerce influência em suas ações, seu modo de pensar, de agir e, consequentemente, nas suas relações interpessoais e na sua forma de se aceitar…


(tum dum tzz...)


Então, por mais que eu esteja consciente disso tudo, eu caio na cilada que o bino sempre caía e me auto saboto, me julgo, me cobro, e não respeito a sinergia entre meu corpo e minha mente. Me pego presa pelo relógio, no calendário, nas malditas datas, como um peso que carrego nos ombros e que dói na lombar e me entrava.


Aí me pego lembrando da minha professora de yoga no ouvido “afasta os ombros das orelhas”. Os ombros próximos às orelhas, as costas curvadas, a lombar doendo, e uma vontade enorme de fazer o assana do gato (vulgo, se espreguiçar e alongar, coisa que os humanos esquecem de fazer): meus sinais claros da ausência da prática do yoga e da minha desconexão comigo mesma. Sinais de que me desconectei de mim ao ponto de não perceber que as dores físicas são frutos do peso de querer carregar o mundo, as minhas divagações, os meus silêncios e as expectativas dos outros nas costas. Que é só mais um reflexo de não ter conseguido ser a ser humana evoluída que busca não ter tantas contradições quanto o capitalismo.


Sou daquela que observa tudo e todas e à mim. Encaro pessoas aleatórias e fico observando ela sendo. Mas, muitas vezes, eu tô só olhando um ponto fixo na pessoa enquanto na minha cabeça tá uma tela azul. Fico analisando coisas, construindo ideias e mundos que sequer existem, voltando filmes na minha mente. Às vezes ela se expande tanto que eu me pego pensando “alguém podia tá gravando isso!” “será que eu vou lembrar desse plano mirabolante?” “que merda que eu falei aquela coisa pra fulana de tal x, há 5 anos atrás?” E às vezes parece que minha mente se retrai como um enorme vácuo.


É estranho que às vezes eu preciso ouvir alguém falando, ler, assistir, ou eu mesma falar sobre alguma coisa pra que ela ganhe vida, ou, sei lá, entendimento. Dia desses, uma psicanalista falou num vídeo algumas coisas que eu fiquei tipo “pelo amor da deusa, é isso!”. Tomei nota da ideia principal:

“A angústia é o único afeto que não mente. Onde ela aparece tem uma verdade invertida, do seu desejo mais radical, de uma posição de existência. A angústia aparece no ponto de insuportabilidade do seu desejo, e no medo radical de que você tenha um desaparecimento do seu ser. Mas não recuse esse sentimento. Quando você se perde de você mesmo, é aí que talvez possa surgir o radicalmente novo do que é você. Isso é angústia. Quando aparecer, não recua. Não ceda à anestesias para entorpecer a mente, como consumo, compra, imagem, música, som, ruminações do que passou, álcool, comida, opióides, anfetaminas, curtidas nas redes sociais, açúcar. Essas são ferramentas comuns na nossa cultura para não sentirmos a angústia. Para não sermos nosso verdadeiro eu.”


Talvez essa angústia nos levasse ao melhor de nós mesmas se a vivêssemos plenamente [melhor na minha régua arbitrária do que é ser um ser humano melhor]. E tudo isso renderia mais inúmeras problematizações sobre o fato de que o controle moral de comportamentos e de práticas - como a guerra às drogas, a definição do que é droga lícita e ilícita, o corpo perfeito, a manutenção de uma gravidez indesejada, a imagem que devemos apresentar para sermos bonitas, queridas, respeitadas e admiradas - é uma disputa pelo controle da nossa subjetividade. Os processos mais catárticos são esses em que tento acolher minhas angústias e salvaguardar a minha subjetividade.


Nessas auto análises do passado - que às vezes são uma epifania - eu fico tentando buscar elementos que de alguma forma me ajudariam a me tornar uma pessoa “melhor” hoje (no meu arbitrário conceito de melhor, que pode ser diferente do seu). Diminuo o ritmo da correria bem louca do dia a dia, faço uns rituais internos, olho pra dentro de mim, entro na minha bolha quente e confortável de mim comigo mesma e me alieno do mundo por opção. [Não vamos aqui chamar isso de privilégio, mas vamos chamar de as ‘condições materiais’ que me são postas. Muita gente confunde privilégio com direitos que deveriam ser básicos e universais. E pelos quais deveríamos nos mobilizar, articular e lutar para que fizessem parte do aclamado ‘reino da liberdade’ (e isso é pano pra outra aba de assunto)]


Esse processo pode ser profundo, superficial, não perceptível, ou pode ser só uma nula vontade de fazer qualquer coisa que seja pra mudar esse mundo (de merda) ou pra mudar a mim mesma. Uma vontade de ser, sei lá, um pássaro, um gato fofo, uma aranha costurando a teia, só pra não ter que lidar com o meu mundo imaginário, a minha mente e todo esse transbordamento que é ser.


Sinto uma crescente dor nas costas, uma vontade de chorar. Coloco um vinil do Belchior, acendo um incenso, me concentro em colocar a angústia pra fora em forma de lágrimas. Choro um choro doído e profundo. Que não dura nem o tempo do lado ‘a’ do vinil. Talvez da próxima eu consiga me libertar um pouco mais. Quem, sabe, devagar e sempre... Viver e ser é um processo diário e constante e a felicidade é um momento que nos escapa entre os dedos. Que às vezes dura só o tempo de um vinil (ultimamente, o ‘Totalmente demais’ do Caetano). Pelo menos dos dois lados.


Querem vender pra gente que a felicidade é aquele pote de ouro no final do arco íris. Simbolizado numa corrida eterna pelo feed perfeito e pelas falsas aparências de que estamos todos bem, de que estamos produzindo e felizes enquanto algumas pessoas são jogadas na vala todos os dias (literal ou figurativa).


Meu corpo pede descanso, minha mente quer se desconectar do que é externo. Sinto uma dor nas pernas, um calor no meio das pernas e uma dor no âmago do meu útero. Sangue. Menstruação. Um novo ciclo.


Ainda bem que existe o tal dos arquétipos do imaginário coletivo. Recorro à potência que me dá a vivência do bendito sagrado feminino, que me permitiu construir ferramentas pra me reinventar. Um novo ciclo, um novo arquétipo feminino, um novo modo de guiar a vida e de lidar com o tempo. Um novo recomeço. Um novo entendimento e ressignificação do que foi aquela angústia. Sinto um poder místico e intuitivo. Sangue. Bem vinda menstruação. Os hormônios vão seguindo seu fluxo, o corpo pede introspecção. A mente se aquieta. Olho pro céu, lua cheia. E meu arquétipo da bruxa anciã me impõe o necessitado descanso que eu, surda e muda, gritava pra mim mesma.


Lua cheia! Só agradeço!

Foto: Bruno Fernandes




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